SEGUNDA PARTE DA DR. LENI GUIMALHÃES
Há uma espécie de "círculo cujo centro está em toda a parte e em parte
alguma". O poder simbólico é, com efeito esse poder invisível, o qual só
pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber
que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem. A cultura que une
(instrumento de comunicação) é também a cultura que separa (instrumento
de distinção) (Bourdieu, 1989: I I).
Os símbolos geram as
estruturas do saber, podendo posteriormente se transformar em estruturas de alienação no
saber.
Os mesmos símbolos ensinados para estabelecer comunicação podem levar à paralisação
e à segmentação do saber. A mesma simbolização pode ter um caminho tanto de
aproximação quanto de afastamento do saber e das pessoas. Tentando delimitar melhor este
fenômeno em nossa tese de doutoramento, utilizando a terminologia de Roland Barthes,
resolvemos efetuar um estudo mais aprofundado das estruturas de alienação no saber.
As estruturas de alienação no saber se apresentam tanto no plano dos idioletos
(linguagem grupal e/ou individual) como no da língua (linguagem social). Em ambos a sua
característica maior é a coisificação ou reificação da linguagem. E estabelecido,
através delas, um processo de alienação de tal ordem que é como se o saber tivesse
tomado forma e assumisse uma vida independente do pensamento mais atualizado dos sujeitos.
No plano do idioleto, na sua família, a criança pode aprender certas palavras, que crê
sejam comuns a todos os sujeitos. Ela pode utilizar o fonema "Bu" e a mãe
entender que com isto ela está pedindo um copo de água. No entanto, se ela o empregar
para pedir água fora de casa, dificilmente as pessoas poderão compreendê-la. Ela ficou
em um idioleto, em uma fala reificada, particularizada, que exclui outras possibilidades
de articulação e significações. O mesmo processo ocorre também no plano social,
quando a linguagem chega a adquirir uma generalização tão ampla, que pode perder o
sentido e a precisão. Assim, ao se falar que uma coisa é superlegal pode se estar
frisando o fato de que é uma coisa ótima. No entanto, se essa palavra for
freqüentemente utilizada em múltiplas ocasiões, as pessoas poderão ficar em dúvida se
o sujeito sabe o que é realmente uma coisa super. Neste caso, a palavra super entrou no
lugar do advérbio de quantidade muito. O sentido muito legal ficou camuflado. A palavra
super, que se referia originariamente a um contexto superlativo, perdeu o seu eixo
original de inserção, tomando a aparência de um advérbio de quantidade.
Em decorrência, pode-se dizer que nas estruturas de alienação no saber é como se os
sujeitos não se dessem conta do que estão fazendo e funcionassem em termos de uma
elaboração inconsciente, em um nível automático de conceitualização. Pierre Bourdleu
designa este processo de "instrumentos inconscientes de construção":
Passo aos conceitos, às palavras, aos métodos que a profissão emprega para
falar do mundo social e para o pensar. A linguagem levanta um problema
particularmente dramático para o sociólogo: ela é, com efeito, um enorme depósito
de pré-construções naturalizadas, portanto, ignoradas como tal, que funcionam
como instrumentos inconscientes de construção (Bourdieu, 1987: 39).
No caso da Pedagogia e da
Psicopedagogia, as estruturas de alienação no saber, como instrumentos inconscientes de
construção, atuam relficando os lugares do discurso pedagógico: o lugar do professor e
o lugar do aluno. Ou seja, elas são guias de ação, formas prévias de conceber como o
professor e o aluno deverão agir e se comportar. Elas se encontram fundamentalmente no
âmbito da própria linguagem, sendo compostas por hábitos, repetições, estereótipos,
cláusulas obrigatórias e palavras-chaves, estruturando o pensamento dos sujeitos.
Os símbolos introduzem no sujeito um processo de uso duplo tanto de aproximação quanto
de distanciamento das coisas e das pessoas. Os símbolos tendem a formar dentro do sujeito
verdadeiras cadeias simbólicas alienadas: as estruturas de alienação no saber. O seu
papel fundamental é impedir um contato mais estreito entre os sujeitos ou dos sujeitos
com o saber.
Ou seja, elas são estruturas defensivas que, em um determinado momento, são utilizadas
pelo sujeito ou pela sociedade para introduzir um distanciamento entre as pessoas ou em
relação a um saber novo. Elas revelam formas prefixadas de lidar com o conhecimento e o
saber. Formas acionadas pelo desejo de não-saber para que o sujeito, o grupo ou a
sociedade se paralisem, impedindo-se de ir para a frente e de conhecer mais. Alícia
Fernandez concebe estas estruturas como verdadeiros "clichês", isto é, formas
estereotipadas de saber:
Para pensar novas idéias temos que desarmar nossas idéias feitas e misturar
as peças, assim como um tipógrafo ver-se-á obrigado a desarmar os clichês,
se deseja imprimir um texto no novo idioma (Fernandez, 1991: 23).
As estruturas de alienação
no saber se dividem em dois tipos básicos: as estruturas sociais de alienação no
saber e as estruturas individuais de alienação no saber.
As estruturas sociais de alienação no saber são sistemas simbólicos utilizados pela
sociedade para fornecer um código geral em que os sujeitos encontrarão sempre guias de
ação predeterminados. Estas formas alienadas não surgem ao acaso. Elas são os
resíduos das estruturas de saber que, ao longo do tempo, perderam o seu potencial gerador
de conhecimento, tornando-se formas inadequadas e preconcebidas de apreender a chamada
realidade concreta. Elas são formas de saber que perderam a capacidade de possibilitar
uma comunicação efetiva entre os sujeitos. Podemos associá-las aos processos vinculados
ao cotidiano das pessoas, principalmente ao saber-fazer das pessoas. Por exemplo, o
professor, ao longo da sua prática pedagógica, aprendeu a dar aula de um determinado
modo. Aos poucos, este processo transformou-se em um hábito, passando a estruturar a sua
prática diária. Como Chico Buarque de Holanda costuma cantar: "Todo dia ela faz
tudo sempre igual".
As estruturas de alienação no saber são modos de ação socialmente determinados
(hábitos, repetições, estereótipos, cláusulas obrigatórias e palavras-chave) que
estruturam o que escutar, o que dizer e o que fazer em um determinado momento. O mesmo
conteúdo que o professor aprendeu na universidade para formá-lo e informá-lo pode, em
outro momento, desinformá-lo e colidir com as suas novas necessidades de atuação
docente.
Quando se assinala a importância da constante reciclagem do professor não é porque as
teorias simplesmente mudaram, mas porque os símbolos se reificaram impedindo o professor
de estabelecer um melhor contato com os seus alunos. As estruturas de alienação no saber
enquanto sistemas simbólicos acabam por se constituir em um sistema de crenças a
respeito do que-fazer pedagógico, impregnando de forma irreversível o processo de
atuação do professor.
O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a
subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença
cuja produção não é da competência das palavras. A destruição deste poder de
imposição simbólico radicado no desconhecimento supõe a tomada de consciência. do
arbitrário, quer dizer, a revelação da verdade objetiva e o aniquilamento da crença
(Bourdieu, 1987: 15).
Aquilo que o professor aprendeu durante o período em que era estudante passará a nortear
a sua forma de ação docente. Gradativamente, o que eram guias de ação eficazes no
princípio, aos poucos se transformam em formas estereotipadas de enxergar os seus alunos.
Formas que o levam a estabelecer certos hábitos, certas repetições, certas
palavras-chaves etc. Um outro nome que caberia às estruturas sociais de alienação no
saber são as formas prefixadas do cotidiano escolar. Formas que engolem as relações
sociais tendendo a despersonallzá-las, isto é, esvaziando-as de um contato mais
aprofundado entre os sujeitos.
O mesmo processo ocorre com o aluno. Ele passa a lidar com o professor ou com a situação
escolar de uma forma preconcebida. O professor passa a ter uma imagem fixa, estabelecida a
partir da sua interação com a classe, ou através de situações passadas. Esta forma
estereotipada passa a reger todo o contato do aluno com o professor e vice-versa.
Além do efeito deletério nas relações sociais na escola, as estruturas de alienação
no saber tendem a gerar outro tipo de processo de alienação: o das estruturas
individuais de alienação no saber. Da mesma forma que as estruturas sociais de
alienação no saber, elas são compostas por hábitos, repetições, estereótipos,
cláusulas obrigatórias e palavras-chave. Em termos sociológicos, pode-se dizer que,
enquanto as estruturas sociais de alienação no saber se referem ao plano
macroestrutural, as estruturas individuais de alienação no saber se referem ao plano
microestrutural. As primeiras, mais abrangentes, delineiam a forma de ação; as segundas,
mais específicas e particularizadas, o conteúdo. As estruturas individuais de
alienação no saber refletem as formas estabelecidas por cada sujeito para se defender do
saber. Lacan esboça alguns destes aspectos:
Neste ensino, assim como numa análise, lidamos com resistências. As resistên-
cias têm sempre sua sede, nos ensina a análise, no eu. O que corresponde ao
eu é o que por vezes chamo dos preconceitos que comporta todo saber, e que
cada um de nós carrega individualmente. Trata-se de algo que inclui o que sabe-
mos ou cremos saber - pois saber é sempre, por algum lado, crer saber.
Por isto, quando uma perspectiva nova lhes é trazida de uma maneira descentrada
com relação à experiência de vocês, sempre se opera um movimento pelo qual vocês
tentam reencontrar o equilíbrio, o centro habitual do ponto de vista de vocês - sinal
daquilo que lhes explico, e que se chama resistência. Seria preciso, ao contrário,
que se abrissem às noções surgidas de uma experiência outra e tirassem proveito
(Lacan, 1985: 58).
As estruturas de alienação
no saber chegam a atingir até certos contextos, em que se acreditaria tradicionalmente
haver apenas atuações espontâneas, tais como o uso dos brinquedos e materiais
pedagógicos. Antes mesmo de entrar em contato com o material proposto, o aluno utiliza as
chamadas estruturas de alienação no saber. Estas têm uma origem dupla: social e
individual. No primeiro caso, refletem os sistemas simbólicos onde os símbolos foram
inicialmente cunhados: a família e a escola. No segundo caso, as estruturas de
alienação no saber refletem o próprio processo de construção dos símbolos pelo
sujeito, ou seja, os recortes que o sujeito introduz nos conteúdos que recebeu da sua
família e da sua escola.
É importante que o professor perceba que a forma como a criança reage ao objeto não é
simplesmente um produto do processo da sua interação com o objeto no momento, mas um
produto de sua história pessoal e social. Ao ser apresentada a um material pedagógico ou
brinquedo, a criança pode bater ou jogar o material no chão, mordê-lo, olhá-lo
fixamente, perguntar a uma outra pessoa de quem é o material etc. Isso porque as
estruturas individuais de alienação no saber refletem verdadeiros maneirismos que
antecedem o próprio processo de ensino-aprendizagem.
Com as chamadas crianças normais, este processo de transição é muito rápido e pouco
percebido. Com as chamadas crianças excepcionais, ele se revela mais claramente,
refletindo o processo duplo de implantação da aprendizagem: a do desejo de aprender e a
do desejo de não-aprender.
Por exemplo, o professor vai trabalhar com uma criança tida como autista. No contato
inicial, ele começa a desenhar algo com uma caneta em uma folha de papel. Aos poucos, a
criança se desinibe e começa a desenhar também. O professor faz um bonequinha. O aluno
diz que o bonequinha é ele (aluno). Em seguida, dizendo que é ele outra vez, desenha o
mesmo bonequinha. O professor dá uma outra folha de papel, pedindo à criança para
desenhar outra coisa. O aluno faz outra vez o mesmo bonequinha.
Querendo mudar o comportamento do aluno muito rapidamente, o professor introduz uma outra
folha e um material novo - o, giz de cera. O aluno não aceita o giz de cera, preferindo a
caneta. O professor insiste no desenho com o giz de cera. O aluno se retrai e se fecha,
negando-se a realizar as suas atividades. Devido à estrutura individual de alienação no
saber, o aluno continua preso ao objeto caneta e ao desenho do bonequinho, não tendo
feito a passagem para o giz de cera e para um outro assunto. Pode-se dizer que ele ainda
não se sente livre o suficiente para trabalhar sem um modelo da atuação anterior.
Volta-se para o que já sabe, tentando dar conta do momento presente. Pára a cadela
simbólica, apanhado em uma estrutura de alienação no saber. Só consegue desempenhar a
atividade se ela for feita do modo que aprendeu inicialmente.
O professor pode acreditar que o aluno está querendo chamar a sua atenção. No entanto,
o problema é bem mais sério, o aluno foi captado em uma estrutura de alienação no
saber que comanda o seu processo de aprendizagem, paralisando-o em um determinado ponto.
Para sair desta situação, ele precisa ser trabalhado mais aprofundadamente com o
material anterior. O professor precisa atender a esta necessidade especial do aluno.
A Educação Especial e a Pslcopedagogia propiciam esta forma mais aprofundada de se
trabalhar com o aluno. Elas levam em consideração as necessidades específicas de cada
aluno, privilegiando-se a "escuta" do que está realmente acontecendo naquele
momento. Isso porque o sistema simbólico e imaginário do aluno é único, não se
devendo lidar com ele a partir de esquemas generalizadores.
No caso mencionado, o professor poderia analisar o processo da criança como uma
resistência a materiais novos. Na realidade, havia um eixo estruturando esse processo
aparentemente aleatório. A caneta fazia parte de um processo de estruturação do
vínculo da criança com o pai. Todas as noites, antes de dormir, o pai ia ao seu quarto
para contar uma história. Sendo cartunista, acabava desenhando, com a caneta, uma
história para o filho.
A caneta foi o objeto transferencial que propiciou tanto o contato e o seu oposto - o
distanciamento dos sujeitos, ao se constituir em uma estrutura de alienação no saber. A
caneta não era um objeto qualquer. Retirá-lo rapidamente era excluir o objeto que
materializava afeto para a criança, um objeto que a ligava ao pai. A caneta era o objeto
gerador de afeto. A sua retirada acabou tendo como conseqüência o fechamento posterior
da criança.
Em síntese, os objetos utilizados na aprendizagem não têm uma existência neutra. Eles
refletem o próprio processo interior do aluno e do professor. Se o professor não souber,
em algum momento, trabalhar aprofundadamente com o material introduzido, os alunos
perceberão a sua postura insegura. Com isso, como assinala Mauco, ele acabará expondo,
direta ou indiretamente, aos alunos, os seus próprios fantasmas:
A relação aluno-professor vai depender em larga escala do que o professor é
inconscientemente. Com demasiada freqüência, os educadores ignoram a
importância das reações inconscientes, tanto neles como nas crianças. Esta
ignorância surge com clareza nas situações afetivas que suscitam a expressão
dos desejos libidinais recalcados. É assim que a projeção dos fantasmas da
criança (e os do professor) pode ter naturalmente uma intensidade particular no
domínio sexual. Durante largo tempo a Universidade viu em qualquer manifestação
sexual, por ligeira que fosse, o "Mal" por excelência. Uma única palavra "indecente"
ou um desenho "indecente" era suficiente para justificar uma expulsão imediata.
(Mauco, 1987: 124).
Percebe-se que, no ensino, o
professor não introduz um objeto qualquer. O objeto de ensino, enquanto um símbolo,
carrega em seu bojo toda a história passada do aluno e do professor, podendo desencadear,
em ambos, processos conscientes e inconscientes de atuação. É este sistema prévio que
chamamos de estruturas de alienação no saber. É ele que precisa ser trabalhado antes
mesmo de o professor e o aluno entrarem em contato com o material em si.
O uso de brinquedos, jogos e materiais pedagógicos, do ponto de vista pslcopedagógico,
necessita da percepção do contexto em que se encontram inseridos. É preciso que o
professor e/ou psicopedagogo identifiquem a matriz simbólica anterior do objeto, para
entender melhor as necessidades e dificuldades mais imediatas dos alunos.
O uso dos brinquedos, jogos e materiais pedagógicos as estruturas de alienação no
saber
Um dos aspectos mais importantes a ser levado em conta pelo professor e pelo psicopedagogo
é o reconhecimento das estruturas prévias de alienação no saber que o professor e o
aluno apresentam em relação ao uso de brinquedos, jogos e materiais pedagógicos. São
elas que impedem o objeto seja empregado em uma gama mais rica de utilização.
Apresentamos abaixo algumas das estruturas de alienação no saber mais comuns,
tradicionalmente usadas pelos professores e alunos:
1. A concepção e capacidade lúdica do professor. Um professor que não sabe e/ou não
gosta de brincar dificilmente desenvolverá a capacidade lúdica dos seus alunos. Ele
parte do princípio de 'que o brincar é bobagem, perda de tempo. Assim, antes de lidar
com a ludicidade do aluno, é preciso que o professor desenvolva a sua própria. A
capacidade lúdica do professor é um processo que precisa ser pacientemente trabalhado.
Ela não é imediatamente alcançada. O professor que, não gostando de brincar,
esforça-se por fazê-lo, normalmente assume postura artificial, facilmente identificada
pelos alunos. A atividade proposta não anda. Em decorrência, muitas vezes os professores
deduzem que brincar é uma bobagem mesmo, e que nunca deveriam ter dado essa atividade em
sala de aula. A saída deste processo é um trabalho mais consistente e coerente do
professor no desenvolvimento da sua atividade lúdica.
2. Os modos estereotipados do professor conceber o material apresentado. Diante de um
material novo, é bastante comum o professor estabelecer, uma atitude distanciada em
relação a este objeto, colocando-se como especialista e não como quem! brinca com o
material. O seu olhar. é técnico, basicamente o olhar do professor ou do psicopedagogo
sobre o objeto, isto é, um olhar adulto. Acontece que quem vai utilizar o objeto
geralmente é uma criança ou um adolescente. Muitas vezes aí se estabelece uma
incompatibilidade entre esses dois olhares.
3. As formas estereotipadas de o professor conceber o aluno. Esta estrutura de alienação
no saber introduz um problema bastante sério do ponto de vista da ludicidade. A imagem
que o professor tem do aluno não é o aluno. Este está em um outro lugar, tendo de ser
resgatado através da fala na relação professor/aluno, pslcopedagogo/aluno. É o
próprio aluno que tem de dizer quem ele é, do que gosta, com que quer brincar etc.
Normalmente, este é um dos processos mais difíceis de c) professor alterar. Para muitos
professores, a imagem do aluno chega a adquirir a certeza de uma crença. O professor
acredita piamente que a imagem que ele tem do aluno é o próprio aluno. Ele não percebe
que, sendo uma imagem, é um estereótipo, uma construção na linguagem. Em suma, não se
dá conta de que a imagem do aluno é uma produção sua, uma interpretação sua de quem
é este aluno. O aluno está em um outro contexto, que deve ser resgatado através da
própria relação.
4. As formas estereotipadas que o aluno concebe o professor, a instituição, o material
proposto. Elas podem impedir ou atrapalhar o seu contato com a instituição, com o
material proposto ou com o próprio professor. Uma imagem prévia da instituição feita
pelos alunos pode se antecipar à própria captação da instituição real. Uma imagem de
uma escola boa ou ruim tende a se perpetuar na mente dos alunos. Da mesma forma, as
imagens de bom e mau professor também se antecipam à atuação docente, determinando
muitas vezes os rumos do processo de ensino-aprendizagem. Se o aluno não gosta do
material proposto, é bastante comum ele rejeitá-lo, sem tentar estabelecer uma outra
forma de interação.
5. As formas estereotipadas que envolvem o uso do material a ser empregado na comunidade
em geral. As grandes indústrias de brinquedos e materiais pedagógicos estabelecem alguns
parâmetros para o uso do material. Estes indicadores podem constituir imagens tão
impactantes que acabam por desviar o professor ou o psicopedagogo de um trabalho mais
aprofundado com o material. É bastante comum os pais e os especialistas (professores e
psicopedagogos) tomarem a indicação das faixas etárias, colocadas nas caixas de
brinquedos pelas indústrias, como verdades comprovadas. Acontece que muitas
classificações partem de indicadores empíricos, não de pesquisas abrangentes com
faixas de mercado estruturadas. A indústria pode ter testado em apenas um pequeno grupo
de crianças o uso dos brinquedos naquela faixa etária. Os resultados encontrados são
generalizados em seguida a um público maior. É a criança que deve se pronunciar a
respeito do material, não as indicações vagas do fabricante. Ela usa o brinquedo para
atender a uma necessidade especial do momento. Este processo lúdico é que tem que ser
privilegiado, e não quaisquer preconcepções dos adultos e/ou dos fabricantes a respeito
do brinquedo.
6. As formas estereotipadas que envolvem o uso do material a ser empregado. Muitas vezes o
professor utiliza brinquedos, jogos e materiais pedagógicos de uma maneira redutora e
rotineira. O material a ser dado para o aluno deverá ser farto e variado. O professor ou
psicopedagogo poderá criar locais onde, em seu próprio ritmo de trabalho, a criança
poderá escolher livremente o que quer fazer. Um dos exemplos mais eficazes desta forma de
trabalho são os cantinhos de música, ciências, artes etc. bastante empregados na
pré-escola.
O uso do material deverá levar em conta as necessidades especiais e a singularidade do
aluno. O aluno poderá se recusar em um momento a trabalhar com o material, preferindo
ficar divagando ou conversando. No ensino de I' grau é fundamental que o professor
respeite este processo. As crianças chegam a trabalhar, às vezes, quatro horas seguidas
em atenção contínua. Ao longo desse período, podem ter um pequeno Intervalo para se
refazer, e depois voltar a prestar atenção. Isso não quer dizer que não se irá
trabalhar o porquê de a criança não ter desejado lidar com o objeto. No final da
atividade, o professor ou psicopedagogo pode pedir a cada criança para verbalizar
livremente o que sentiu ao brincar com o material. Elas podem dizer que não queriam
brincar, queriam conversar, ficar paradas etc.
O aluno poderá fazer coisas totalmente imprevistas com o material, ações que o
professor ou psicopedagogo muitas vezes poderá considerar inadequadas. E preciso julgar
estas ações da perspectiva da criança. Somente o aluno, a partir da sua história de
vida, conhece as razões para agir daquela maneira.
Uma criança deficiente mental onde quer que fosse levava um paninho e limpava muito bem
os objetos, antes de tocá-los. Posteriormente o professor velo a saber que este era o
procedimento que a mãe usava rotineiramente com o seu filho. Ela limpava todos os objetos
antes de passá-los à criança. Ao agir desta forma, a criança estava simplesmente
imitando a mãe e cuidando de si mesma da maneira como lhe fora ensinado.
Crianças com problemas motores necessitam de materiais especialmente criados, para
auxiliá-las nas atividades pedagógicas: cadeiras adaptadas, materiais específicos para
a escrita etc. Principalmente com crianças portadoras de lesão cerebral, que não falam,
mas que apresentam nível de compreensão normal (quadriplégicos, paraplégicos etc.), é
fundamental estar atento aos indicadores sutis de cansaço do aluno. Quando a criança que
não fala enrijece o corpo pode estar chegando a hora de mudar de atividade. Esta pode ser
a única forma de fazer o outro sentir que ela não quer fazer o que é proposto.
Assim, o professor pode, neste momento, perguntar se ela deseja descansar ou continuar a
trabalhar, uma vez que ela não consegue sozinha fazer o deslocamento de atividade e
material.
O uso de brinquedos, jogos e materiais pedagógicos: um objeto estruturado ou um objeto
em estruturação?
O que eram então os brinquedos, jogos e materiais pedagógicos? Eram objetos concretos
apresentados aos alunos ou objetos construidos na mente da criança?
A concepção que esboçamos apresenta o material pedagógico como um objeto
construido durante o processo (ensino-aprendizagem), que se funda em três
elementos articuladores básicos: o objeto pedagógico, a matéria-prima pedagógica
e o substrato pedagógico. Com isso queremos dizer que o material pedagógico tem
uma concretude ou essência, uma multiplicidade de imagens desta concretude e um
símbolo representativo da mesma (Mrech, 1989: 50).
A passagem do objeto concreto
para o objeto construido pelo aluno nos parece fundamental. O professor pode acreditar que
sua visão do objeto é a mesma do aluno. Ele não perceber que, embora a essência do
objeto seja a mesma, a sua inserção se dá em um universo simbólico diferente. Para
identificar o que o aluno está percebendo, é fundamental captar em que contexto
simbólico e/ou imaginário o objeto do aluno se encontrar inserido.
O uso de brinquedos, jogos e materiais pedagógicos e a construção da modalidade de
aprendizagem do aluno
É importante perceber o objeto em construção, para não reduzí-lo a uma leitura rasa
do que pode estar acontecendo com o aluno. Este processo é fundamental, porque não é
só o objeto do conhecimento e do saber que está sendo construido, mas também a
modalidade de aprendizagem do aluno.
O conceito de modalidade de aprendizagem proposto por Alícia Fernandez permite que se
passe do universal para o particular, do estático para o dinâmico, do concreto para o
abstrato, de uma percepção do objeto pedagógico construido para um objeto pedagógico
em construção. O aspecto fundamental deste processo é o modo como se dá o processo de
construção do material pedagógico no interior do sujeito. A construção do material
pedagógico e da modalidade de aprendizagem do aluno são processos em estruturação:
Em cada um de nós, podemos observar uma particular "modalidade de aprendiza-
gem", quer dizer, uma maneira pessoal para aproximar-se do conhecimento e para
conformar seu saber. Tal modalidade de aprendizagem constrói-se desde o nasci-
mento, e através dela nos deparamos com a angústia inerente ao conhecer-desco-
nhecer.
A modalidade de aprendizagem é como uma matriz, um molde, um esquema de
operar que vamos utilizando nas diferentes situações de aprendizagem. Se anali-
sarmos a modalidade de aprendizagem de uma pessoa, veremos semelhanças com
sua modalidade sexual e até com sua modalidade de relação com o dinheiro
(Fernandez, 1991: 109).
A modalidade de aprendizagem
revela a forma e o conteúdo do processo de estruturação da aprendizagem do sujeito,
trazendo em seu bojo a criação do material pedagógico como um objeto resultante do
processo de ensino-aprendizagem. Diferentemente do modelo de aprendizagem geral e
universalista, a modalidade de aprendizagem é sempre singular e específica. O material
pedagógico ou objeto pedagógico construido interiormente Pelo aluno é sempre único. É
através da modalidade de aprendizagem do sujeito que realmente podemos conhecer como o
material introduzido pelo professor foi captado e quais são as necessidades específicas
do aluno. São estas necessidades específicas que deverão nortear o nosso trabalho.
João, ao entrar na sala, começa a passar a mão em todos os objetos, como se através
deste processo pudesse percebê-ios melhor o objeto. A sua modalidade de aprendizagem o
leva a privilegiar o tato como um processo de construção do conhecimento. Todos os
objetos com os quais interage são percebidos como objetos táteis. Isso mostra que há em
seu interior uma necessidade específica, que o leva a construir a sua modalidade de
aprendizagem direcionada para o lado tátil do conhecimento e do saber. Ciente disso, o
psicopedagogo ou professor pode estruturar as atividades propostas, ensinando as
diferentes texturas dos objetos: áspero, liso, aveludado etc. Ou pode pedir para que a
criança fale de suas percepções, investigando o modo como ela constrói o objeto.
O que são os brinquedos e materiais pedagógicos enquanto objetos estruturadores do
conhecimento e do saber?
Primeiramente brinquedos, jogos e materiais pedagógicos não são objetos que trazem em
seu bojo um saber pronto e acabado. Ao contrário, eles são objetos que trazem um saber
em potencial. Este saber potencial pode ou não ser ativado pelo aluno.
Em segundo lugar, o material pedagógico não deve ser visto como um objeto estático
sempre igual para todos os sujeitos. O material pedagógico é um objeto dinâmico que se
altera em função da cadeia simbólica e imaginária do aluno.
Em terceiro lugar, o material pedagógico traz em seu bojo um potencial relaciona], que
pode ou não desencadear relações entre as pessoas. Assim, o objeto que desencadeou
relações muito positivas em uma classe pode ser o mesmo que paralisará outra.
Em quarto lugar, o material pedagógico são objetos que trazem em seu bojo uma
historicidade própria. Além de portar a historicidade de cada aluno e professor, eles
apresentam também a historicidade da cultura de uma dada época. Por exemplo, poderíamos
pensar que a boneca da Grécia antiga apresenta em seu bojo as mesmas características
simbólicas e imaginárias da boneca contemporânea. Mas será que isto é verdadeiro?
Conforme a Sociologia e a História Antiga, as bonecas gregas estavam inseridas em
sociedades distintas do ponto de vista sócio-econômico. A sociedade grega era
escravagista, com um lugar peculiar em relação à posição da mulher. Em Esparta, a
mãe destruía os filhos que apresentavam algum tipo de deficiência. Privilegiava-se mais
o vínculo da mãe com a sociedade do que com a criança. Nosso conceito de maternidade é
diferente da concepção de maternidade da Grécia antiga, o que acaba afetando também a
visão do objeto concreto boneca.
Quando se lida com brinquedos, jogos e materiais pedagógicos deve-se atentar a uma enorme
quantidade de estruturas de alienação no saber que cercam estes objetos. É preciso que
elas sejam identificadas com precisão, para que o processo de intervenção
psicopedagógica se realize mais facilmente.
O uso de brinquedos, jogos e materiais pedagógicos o processo de construção da
inteligência do aluno
É importante não se fazer uma leitura rasa do processo de escolarização e construção
da inteligência da criança. Howard Gardner estudou a possibilidade de a criança
apresentar mais de um tipo de inteligência:
(... ) Em certo sentido, ler abre o mundo. O estudo de Scribner-Cole nos
relembra, porém, que devemos ser cuidadosos antes de supor que qualquer
forma de educação necessariamente acarreta amplas conseqüências. E, de
fato, quando consideramos as vastas diferenças entre uma escola rural e uma
escola religiosa tradicional ou entre uma escola religiosa tradicional e uma
escola moderna, parece claro que o tipo de escola faz uma diferença intelectual
tão grande quanto o fato da escolarização em si (Gardner, 1994: 275).
Muitas vezes, ao longo da
formação da modalidade de aprendizagem do sujeito penas certas faixas de inteligência
foram privilegiadas. Na sociedade tradicional é bastante comum um desenvolvimento baseado
nas atividades de memorização; assim como na sociedade moderna ocorre um privilegiamento
do pensamento lógico-matemátlco. Por razões de ordem pessoal o aluno pode ter ficado
exposto a outras faixas específicas do processo de conhecimento.
Uma criança autista que gostava de música ficou muito mais exposta a discos e fitas
musicais do que uma outra que não gostava. O professor pode partir deste aspecto para a
ensiná-la. Com isso, o aprendizado da música deixou de ser apenas um efeito mecânico do
processo de memorização da inteligência musical para tornar-se produto de uma
investigação e estruturação de outros tipos de inteligência.
Tradicionalmente se pressupõe um uso de brinquedos, materiais e jogos em que se acredita
que os conhecimentos de um tipo de 'Inteligência transitem facilmente para outro. Gardner
revelou que este processo não ocorre de forma natural e precisa ser desencadeado pelo
professor.
(...) cada inteligência é relativamente independente das outras e que os
talentos intelectuais de um indivíduo, digamos, em música, não podem
ser inferidos a partir de suas habilidades em matemática, linguagem ou
compreensão interpessoal (Gardner, 1994: XI).
Os brinquedos, jogos e
materiais pedagógicos geralmente são empregados a partir de um modelo de inteligência
unidimensional que privilegia o eixo cognitivo. Estudos recentes têm revelado que as
inteligências podem ser várias e não necessariamente intercambiáveis entre si. Embora
a criança autista tenha uma excelente memória para a música, isto não quer dizer que o
mesmo ocorra com os seus outros tipos de inteligência. A sua inteligência lingüística
pode ainda não ter percebido o sentido das palavras. A sua inteligência lógico-temporal
pode ainda não saber o que é passado, presente e futuro etc.
Embora o mesmo material tenha a possibilidade de ser utilizado por várias inteligências,
isto não quer dizer que ele seja efetivamente empregado na prática. Ele pode ficar
apenas no uso potencial. Conforme o aluno um trabalho mais específico pode ser
necessário.